FESTIVAL TRIÂNGULO: Paragens e registros

MATÉRIA RETIRADO DO IDANÇA.

Mesmo que o ano esteja findando e fala-se mais em projeto futuros do que revisões, faço aqui um registro em torno do Festival do Triângulo, realizado de 27 de outubro a 02 de novembro, em Uberlândia, que chegou à sua 23ª edição. Desta vez, o encontro que mobilizou grupos amadores e formações profissionais foi organizado em torno do tema Partilhas na dança – Criação, Visibilidade, Resistência. Na programação, mostra infantil, mostra amadora, mostra profissional, residências. Desta vez, sem patrocinador, a Secretaria de Cultura do município bancou o festival, que teve orçamento acima dos R$ 400 mil.

Criar, tornar viável, resistir. Ações profundamente importantes para a dança brasileira acionaram as partilhas do Seminário Pedagógico e do Fórum de Debates coordenados pela bailarina e pesquisadora Marila Vellozo. Entre os encontros para conversar com os artistas, que tiveram participação dos especialistas Edy Wilson, Fábio Dornas e Gabriela Christófaro, e os eixos temáticos com importantes registros a se fazer. São recortes, memórias, mas ainda assim, pertinentes.

Marila apresentou um amplo e elucidativo panorama sobre a conjuntura e os contextos possíveis para a economia da dança. Insistiu nas condições de existência, nos ambientes, situações, demandas e ideias (replicadas inclusive) para a conjuntura brasileira. Debateu modelos como os das companhias estatais e alertou sobre a necessidade de ocupação de espaços pelo setor nos devidos colegiados, fóruns representativos e no Plano Nacional da Dança.

Com presença vigorosa e irrequieta, a mineira Dudude Hermann personifica a resistência. Vem de uma formação em grupos e companhias, mas fortalecida por ações individuais, atualmente aposta no que diz ser a “dramaturgia do pequeno”, pois não quer se transformar num CNPJ. Manifestou isso no palco, em A Projetista, integrante da Mostra Profissional, e em suas intervenções. Falou de farejamento, disse que professa verdades temporárias. Quer improvisar para sobreviver. Aposta em tecidos afetivos, cooperação, colaboração, microeconomia. Faz, à sua maneira, mineiramente, subversões criativas. Ironizou: “a arte não salva ninguém, mas uma bolsa salva”, “o artista não tem projeto, precisa existir”.

No encontro com a bailarina, professora e pesquisadora Lenira Rengel, que analisou a Mostra Infantil, lições de delicadeza com as crianças. Ela alertou para a não imposição de partituras estranhas ao corpos em formação e falou sobre o perigo dessas práticas, dos figurinos e trilhas musicais que promovem a erotização precoce às meninas e meninos inseridos no universo da dança. Lenira sugeriu ações de inserção, educativas, lúdicas. Propôs distensão de conceitos para dinamizar possibilidades de formação com a dança.

Na fala de Andréa Bardawill, o reforço da construção de espaços de convivência, tal qual o Festival do Triângulo e muitos outros pelo Brasil exercitam. Nesse sentido, ela defende, também, a construção de uma rede de afetos, possibilidades de construção de modos de convivência e de organização – “um mundo de existência possível para a dança”. Para tanto, fundamental é pensar em novas relações de gestão, saber o que eles (os investidores e gestores) querem ouvir e o que a gente quer falar. Os formatos podem ser diversificados, atentos a políticas e contextos, com curadorias e coordenações pedagógicas específicas.

Figura com articulação em festivais, mostras e bienais, Andréa tocou numa questão que perpassou diferentes falas em diferentes momentos, o formato competitivo. Nesse aspecto, ela frisou que um festival pode não ser competitivo, mas, em nada adianta, se continuarmos a ensinar e praticar a dança de forma competitiva.

Por isso, é preciso ser competente para não competir. Em recorrentes momentos, o tema da competição em festivais foi explicitado ou percorria as falas subliminarmente. Muitas vezes, artistas e grupos falavam da importância de estar no festival, de ser visível, de ser alguém através dele. Claro que há nisso um aspecto sobre a eficiência e a competência dessa história construída em 23 edições. O Festival do Triângulo é, sim, um instrumento de afirmação artístico-cultural da cidadania. Ela se vê orgulhosa, vestindo roupa especial, sendo aplaudida e aplaudindo seus pares no ginásio Sabiazinho.

Mas é preciso ir além. É importante relembrar que muita gente saudou a decisão pela não competição, estabelecida há uma década. Falam sobre a troca de gentileza, do pegar junto na hora de preparar a entrada no palco, nas permutas e intercâmbios de fazeres artísticos, na reorganização de seus fazeres a partir do contato com grupos daqui, da região, de outros Estados e mesmo países. São muitas as angulações deste Triângulo.

As competências são construídas de muitas maneiras. Nas apresentações, nas conversas dos fóruns e seminários, nos retornos dados por especialistas a bailarinos e coreógrafos. Elas também se organizam através da construção de redes de parcerias, de apoios, na forma de ocupar espaços de representatividade, na reinvenção constante dos procedimentos artísticos. A capacidade de ser competente é, também, a capacidade de saber fazer autocrítica, de reorganizar um contexto de atuação, um grupo e seus integrantes, as escolhas artísticas e estéticas.

A eficiência que compete a muitos teve recortes pontuais, relatos. Na mesa formada por Vanilton Lakka, Wesley da Rocha e Fernanda Beviláqua, por exemplo. Lakka contou como se vale de muitos contatos para construir a sua existência artística. São relações com instituições formais, coletivos artísticos e mesmo curadores. Assim, mantém-se em circulação pelo Brasil, América latina e Europa. Rocha, o Chocolate, falou da sua afirmação como artista e cidadão através da dança de rua. Isso o fez circular pelo mundo e, ao mesmo tempo, manter contato com sua comunidade, onde segue atuando. Fernanda explanou o modelo de articulação comunitária que possibilitou a criação do Olhares Sobre o Corpo, encontro anual que traz a Uberlândia grupos, coreógrafos, criadores e especialistas.

A produtora paulista Solange Borelli falou sobre articulações possíveis nas esferas públicas e privadas. Defendeu a necessidade de estabelecer diálogos e vínculos “com nossos pares e nossos ímpares”. Sábia metáfora, pois, como se falou nos fóruns, quem se apresenta é visto, mas também vê os demais. Nesse trânsito, fortalece seu repertório, podendo enriquecer seus procedimentos e produtos artísticos. Novamente uma questão de competência e não de competitividade.

Na explanação da produtora, a rubrica sobre a importância de não ter medo da palavra mercado. Isso, no contexto dos encontros possibilitados pelo festival, significa apostar na economia da dança sabendo, principalmente, acreditar no produto que se tem, na arte que se faz. Claro, a dança tem um tipo de organização específica. E é, preciso, sobretudo, articulações qualificadas. Para que isso aconteça, é bom que existam leis, projetos, editais. E é fundamental ser competente o suficiente para entender estes mecanismos e a forma de se apropriar deles.

Mostra profissional

Na programação da Mostra Profissional do Festival do Triângulo, a paisagem urbana é surpreendida por procedimentos de dança, reorganizando seu contexto. Contundente, agressiva pelos materiais e pelo impacto das ações dos quatro integrantes do grupo uberlandense Strondum, Carcaça 2 tem o mérito de não deixar os passantes sem alguma reação. Claro que o estranhamento é a primeira delas. Mas, depois disso, o público topa o jogo coreográfico.
De quais carcaças fala o grupo? Dos corpos humanos mortificados diante do contexto urbano e contemporâneo, da agressividade e da solidão em bandos, do impacto disso nos entornos das aglomerações humanas. Há um evidente discurso político amparado por uma opção estética. Ela se constrói entre socos, saltos, mortais, pontapés, murros. Mas, ao mesmo tempo, o impacto e o ruído dessas ações ganha nuances delicadas, com intervalos em que o objeto cênico (uma carcaça de carro corroída) vira contexto para um refreamento das potentes ações do quarteto. A praça vira, também, um palco de coreografias coletivas.
Nesta segunda versão em torno do mesmo projeto, o Stromdum insere pessoas do público dentro da tal carcaça. Aposta ainda mais no impacto/diálogo, ao mesmo tempo em que reinventa sua ação. A linguagem corporal construída tem a propriedade do vigor e da habilidade de enfrentar os riscos. Talvez, por isso, há tamanha sintonia com quem os assiste: viver em tempos de violência (de muitas ordens, inclusive políticas, estéticas, econômicas e sociais) é um desafio diuturno.

Na performance Arma Ação, Luana Magrela intervém de forma discreta no espaço público. Mas, uma vez percebida, tem a habilidade de atrair para si os olhares. O esgarçamento da relação tempo/espaço, a possibilidade de borrar a paisagem cotidiana, a inserção de um corpo dançante neste contexto, aciona compartimentos da sensibilidade.

Na atividade realizada na Praça Rui Barbosa, a personagem/performer despertou curiosidade de uns e, também, desdém de outros. Desacelerou o caminho daquele vendedor que saíra da loja, fazendo-o entortar mais de uma vez a cabeça. Refez minimamente o caminho do observador, reinventou trânsitos, reverteu em pensamento a ação corporal.

Dado na composição da personagem, impossível não perceber o figurino algo agressivo que aperta o corpo vestido em vermelho que, a princípio, surge coberto por um fino tecido. Os cabelos também são usados para ocultar a face (a identidade?!) da intérprete. Naquele corpo que enverga uma espécie de corpete feito com peças plásticas e complementado por ferros e fios, que chegam à face numa “focinheira” igualmente metálica há a construção, explicitação, de algum sofrimento. Ou, num viés contrário, uma denuncia pública sobre dores do feminino. São possibilidades de olhar para/lidar com aquilo que pinta a paisagem também pelo viés do inusitado.

Na ação/percurso de Luana Magrela, as instâncias estéticas que aproximam dança, performance e artes plásticas saúdam a transversalidade da arte contemporânea. E, ao mesmo tempo, aproximam o público (iniciado ou não) das muitas possibilidades de partilhas estéticas.
A programação teve ainda Anfíbios, de Ricardo Alvarenga. Significativamente com seu nome no plural, o trabalho é construído a partir da singularidade do procedimento performático de Alvarenga. A nudez é, evidentemente, um dos vetores que envergam a atuação. Mas não o único.

Claro que a proposta dramatúrgica se banha num misto de ousadia e irreverência ao falar também de gênero. Afinal, há um corpo masculino, nu, que se posiciona das mais diferentes maneiras em cena, revelando-se em distintas angulações. De frente ao que posa ser uma afronta, o intérprete minimiza essa possibilidade determinando-se a passear pela cena, com sua fraqueira-aquário.

Aliás, Alvarenga demonstra segurança e metódica habilidade em ligar com seus materiais de criação. De ponta cabeça, respirando dentro d’água com ajuda de um tubo, ele administra a cena e potencializa seu significado. Reverte a posição, subverte o jogo, distendendo o tempo de suas cenas, encharcando seu discurso estético nas águas da performance.

O líquido seminal, á água da origem, aquilo que o intérprete impulsiona com os cabelos para molhar o espaço cênico deságua em outras imagens. Depois da água lustral, que batiza Anfíbios de muitas possibilidades estéticas, há de se aguardar para onde tais procedimentos serão encaminhados. A correnteza fluída das subjetividades construídas até aqui assim permite.

Entre Paragens, entre vãos, entre discursos. Solene e sensorial, ritualístico, o trabalho do bailarino Daniel Santos Costa enverga procedimentos do teatro e da dança. Busca romper com a linearidade, distendendo o tempo, faz alegorias a personagens folclóricos, percorre caminhos do popular, mas fecha seu discurso com um quê de hermetismo erudito.

As trilhas da atuação do intérprete-criador formado na Unicamp são de preciosa corporalidade. Há uma visível e dedicada determinação de construção de partituras coreográficas na movimentação do intérprete. Seus recursos de máscara, figurino e mesmo as soluções cenográficas como o tapete/manto e o biombo estão a serviço da(s) criatura(s) que ele constrói no trabalho. Nesse trânsito, o trabalho ora joga com o lirismo e a delicadeza, ora com o abjeto e o tosco, numa invocação de transes, num trânsito de estados.

Claro que existem memórias cênico-sensoriais ritualizadas em cada movimentação. Não à toa, são sete as pedras que usa. O mesmo pode ser entendido quando faz citação da cruz de Jesus, ícone de expiação, culpa, dor, desencanto, quiçá redenção. Invoca também cantigas, parecendo querer ajustar contas com o boi da cara preta que povoou sua imaginação infantil. Deposita sobre tudo isso uma flor, reverencia as camadas e mais camadas de referências e significações que estão nos entre-lugares disso tudo.

Nestas elipses imagéticas, trilha Entre Paragens um percurso potente, que alude a estados de inquietação. Sofrem personagens e plateia no eco dessa encenação, nas reverberações da obra, nos desvãos das sensações produzidas pelo friccionar dessa estética. Deleitam-se, também, ambos, diante da riqueza do que se experimenta com o trabalho. O resto descobre-se nas frestas disso tudo.

Fôlego da terra

Coordenado pelo coreógrafo e pesquisador Dickson Du-Arte, o Terra Cota Dança Afrocontemporânea é um grupo que tem se destacado na cena de Uberlândia. Apostando na pesquisa e buscando conexões entre a capoeira, dança contemporânea, dança de rua e danças afro-brasileiras, o grupo tem elaborado um caminho próprio, tateando uma autoria e um pensamento para a sua dança. Nesta edição do festival, mostrou eficiência mais uma vez, agora com a obra Águas de Cheiro – Terras e Memórias.

Alguns dos integrantes do Terra Cota participaram da residência artística que Rui Moreira desenvolveu com intérpretes de Uberlândia. O resultado foi uma remontagem de Homens, montada originalmente em 2004, com a Cia Será Q., de Belo Horizonte.

O trabalho foi exemplo de preciosa capacidade de articular informações, desafiar corpos e reorganizar partituras de dança em novos contextos. O conceito de coreógrafo DJ foi exercitado com maestria por Moreira, que participou da apresentação. E é contundente a presença de Rui Moreira em cena. Ele enverga a dança. Elabora com o corpo muitos olhares. Sabe criticar, sabe ser irreverente. E sabe, acima de tudo, comover. O verbo se faz carne, corporificado nas muitas alegorias do trabalho

Mas esta remontagem de Homens ampliou as contaminações e replicações elaboradas pelo corpo contemporâneo que dança. O trabalho de Rui e seus oficineiros explorou contatos, tendo frente e fundo, tendo lapidações. No jogo de espelhos, ampliou espaços cênicos e corporais alargando as variações e os vértices deles, polidimensionando a dança que se viu. É como se o movimento começasse num corpo e terminasse no terceiro ou quarto, alinhado e unido, repercutido.

O diálogo de linguagens foi vigoroso e delicado. Um duo múltiplo entre b boys que, depois de uma batalha tênue e delicada, descansam seus corpos sobre novas compreensões de arte. Que a luta cotidiana lhes seja leve, que a dança enleve suas carcaças! Numa genuflexão silenciosa, é como se alguém soprasse aos seus ouvidos: que a terra lhe seja breve, que eu te ampare e você amplie meus horizontes no mundo.

Feito um dervixe malemolente num repente, Rui Moreira desatou nós da dança de seus intérpretes, dando-lhes corda para tecer novas redes. Lançou ao público sua trama de alegorias e elegias. Fortaleceu, redimensionou e ressignificou aquilo que reverenciamos como dança contemporânea brasileira. Tocados pelo que vimos no palco em estado pleno, revisitamos a reinvenção do humano no mundo. Assim, registramos na memória corporal o tanto de imagens e movimentos triangulados, multiplicados e partilhados pelo Festival de Uberlândia.

Carlinhos Santos é historiador, jornalista, crítico de dança, especialista em Corpo e Cultura: Ensino e Criação pela Universidade de Caxias do Sul e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação (UCS). Também é titular da coluna 3por4, do Jornal Pioneiro, em Caxias do Sul, RS.

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