por Marcio Baraco
O Ciclo I (da Imersão em Contato que aconteceu em dezembro/2012 em Floripa) foi muito intenso, e eu quis em algum momento escrever sobre tudo que vi e senti e aprendi, mas talvez isso seja demais ou talvez eu já nem lembre de tudo, mas preciso ao menos escrever sobre a coisa mais importante.
Quem esteve lá vai reconhecer essa coisa como a regra do 50-50. Mas eu queria contar a história.
Começou com o Gustavo comentando que algumas pessoas faziam os exercícios para dentro, olhando só pra si. A Catalina então se perguntou se ter alguém assistindo fazia diferença, e fizemos uma experiência de nos organizar como uma platéia. E nesse momento algumas pessoas se voltaram totalmente para fora. A Iris discordou, então, que, pra ela, era preciso manter 50% dentro e 50% fora.
E claro que não faz sentido querer medir isso, por exemplo querer saber a diferença entre 50% pra fora e 48% pra fora, mas é a tentativa de articular essas duas realidades, de misturar esses dois modos do estar, eu acho.
E me pareceu também que eram dois tipos de corpo, duas corporalidades (que essa palavra tá na moda). O corpo "para fora" e o corpo "para dentro". Introspecção e exibição, de um lado, mas também "corpo dançante" e "corpo cotidiano". Só que o cotidiano não é exatamente introspectivo, só se misturam mesmo numa busca de algo diferente do corpo-balé, do sistema de dança, se misturam só por serem quebras (possíveis) de um sistema de dança que já não parece suficiente.
E essa tentativa de articular esses dois corpos parecia em mim ser de novo o mesmo foco do CI, a mesma atitude, a mesma atenção que o CI já tinha, principalmente no começo, mas que agora eu estaria criando com minha vontade, ao invés de ser algo que o contato físico com outros corpos ativa automaticamente, visceralmente, por isso involuntariamente.
Mas acho que a mágica estava justamente em ter essa atenção no corpo cotidiano. Por exemplo, muito tempo atrás fiz teatro para trabalhar minha timidez e aprendi a ter um corpo de palco, que faz o que tem que fazer sem timidez, mas a minha timidez ainda estava toda lá, o que era diferente era só o corpo de palco. Então a vida normal não ganha essa energia, a presença fica toda dentro do palco, e fica por isso limitada, limitada ao palco. A busca de um corpo que dança sem deixar de ser cotidiano é uma expansão da dança no mesmo sentido da "desconstrução" do Derrida: uma explicitação de pressupostos, uma investigação das estruturas que nos permitem ser.
Isso é claro não quer dizer que o CI tem que ir para o palco, nem o contrário, mas quer sim dizer que as fronteiras entre uma coisa e outra são complicadas, e vulneráveis a um tipo de questionamento.
Em outras palavras, buscando esse 50-50 em alguns momentos me coloquei em situações que não eram nem uma coisa nem outra.
Na Casa da Tita aconteceu uma performance comigo, com a Iris e o Ricardo. Quando apoiei minha cabeça na Iris ela me fez cafuné, e receber isso foi gostoso tanto como corpo cotidiano quanto como corpo performático. Daí eu falei "Você é um doce", e em algum nível eu sabia que isso era tanto uma fala pessoal quanto uma performance, que falava isso tanto pra ela quanto pras pessoas que estavam assistindo, e até talvez pras pessoas que estão lendo esse texto que eu ainda iria escrever depois. E nessas o Ricardo entra na cena, com uma postura mais cômica-palhaço, mas mesmo isso acolhia a ambiguidade da fronteira, do 50-50, era ainda um pessoa complexa e multifacetada reagindo a uma circunstância muito livre e muito rica de possibilidades. E essa riqueza de possibilidades, me parece, era construída justamente no nosso embaralhamento/articulação de fronteiras.
Um desvio do raciocínio: não acho que se trate de sinceridade. Que eu sinta uma enorme admiração pela Iris, ao mesmo tempo que eu morreria de medo de ter uma relação mais íntima com ela, isso estava no meu "Você é um doce", mas a riqueza de possibilidades não vem disso. A mesma frase falada parada, não dançando, não seria especial. E muitas outras frases absolutamente falsas poderiam ter criado dinâmicas semelhantes. Não se trata de retirar máscaras, acho, mas de máscaras mais complexas, máscaras metalinguísticas, que falam da retirada das máscaras.
Toda essa multiplicidade de níveis serve para um fim não múltiplo: Para construir a presença. Ou seja, não é uma reivindicação de uma arte complicada. Tudo isso cria complicações, mas essas complicações são importantes apenas enquanto podem ser (ou estão sendo) alinhavadas pelas pessoas, reais e concretas, quer as que estão sobre o palco, quer as que as assistem. Presença talvez seja só um nome a mais para essa ação de alinhavar.
Marcio Baraco