O mesmo que fazemos todas as noites – por Marcio Baraco

— Ei, Nita, o que que a gente vai fazer hoje à noite?

— O mesmo que fazemos todas as noites, Baraco, tentar dominar o mundo!

— Mas Nita, como é possível conquistar o mundo se o capitalismo já está em todos os cantos? Se o espetáculo já se infiltrou em todas as mentes?

— De fato, a força do capitalismo é muito grande, uma disputa de forças tem tudo pra dar errado. Mas não é preciso competir forças. Por assim dizer, não é preciso conquistar o mundo para dominar o mundo.

— Mas qualquer que seja o seu disfarce, assim que você começar a crescer o sistema vai perceber.

— Esse é exatamente o ponto, Baraco: Crescer. Grande contra pequeno. Forte contra fraco. Essas são todas lógicas lineares. Começo meio e fim. Sem uma lógica linear entre o que é caro e o que é barato, entre o porrete grande e o porrete pequeno, sem essa lógica o capitalismo não é capaz de funcionar. Se abandonar essa lógica, deixa de ser capitalismo. Vamos dominar o mundo criando uma lógica, ou talvez várias lógicas, não-lineares. Por isso o Contact-Improvisation não tem movimentos certos ou errados, não tem gran finale, nem protagonista, nem tem platéia, não tem diferença entre um corpo que dança e um corpo normal.

— É, Nita, só que a polícia pode vir com um porrete e transformar um corpo que dança num corpo inerte.

— Sim, Baraco, a princípio sim. Mas conforme as pessoas incorporarem as lógicas não-lineares em suas próprias vidas, a lógica linear vai perdendo seu poder de lei. Depois de descobrir o prazer de dançar com um estranho, vai fazer menos sentido buscar um relacionamento baseado em chantagem. Depois de descobrir o prazer do toque sem expectativas, o consumismo vai parecer sem sabor. Depois da excitação de improvisar, em que cada momento revela mundos de possibilidades, seguir cegamente regras e estereótipos vai parecer até um pouco insano. O capitalismo vai continuar igual, mas as pessoas vão parar de acreditar nele.

— Não sei não, Nita, pra mim isso soa como um bando de hippies viajandões, ou pior, como uma alucinação coletiva.

— Claro! Porque a chave do plano é uma reinterpretação. É quase um jogo de palavras. Vamos ganhar simplesmente declarando: "Eu ganhei!" No entanto, Baraco, vamos fazer isso de uma forma que o capitalismo não entende, nem pode entender. O linear está contido no não-linear, mas o contrário não é verdadeiro. O capitalismo é forte porque sua lógica está sempre fazendo coisas, sem parar, por isso ele pôde soterrar todas as outras formas de viver com um mar de bugigangas. Mas a lógica não-linear do contact-improvisation não só sabe ficar parada de forma ativa, é capaz de fazer cada movimento ter sentido. E assim, ao invés de competir pela força, o contato faz a atenção ser mais importante que a força.

— Ixi, Nita, isso não parece muito fácil...

— Não é fácil, mas também não é difícil. É uma prática.

— Narf!


Esse texto nasceu em inglês, no meu blog pessoal, pouco depois de assistir a palestra da Nita Little no Encontro Internacional de CI em São Paulo 2012. Na tentativa de traduzir, ele acabou se tornando um diálogo e ficando mais bem humorado. Embora seja uma tentativa de falar sobre ideias da Nita, ela não teve envolvimento na produção desse texto.

Um comentário:

  1. Achei o texto bem-humorado e lúcido. Ouvi a voz de Nita claramente. Só não consegui entender qual o envolvimento de Little na versão final do texto. Por mais que não seja um texto acadêmico, que tal esclarecer sobre a fonte? fiquei curioso, parabéns.

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